quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"Rêve Oublié" por António Maria Lisboa

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti

Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo

Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no cimo disto tudo uma montanha de ouro

E no fim disto tudo um Azul-de-Prata.

"Inventário" por Alexandre O'Neill


Um dente d'ouro a rir dos panfletos


Um marido afinal ignorante


Dois corvos mesmo muito pretos


Um polícia que diz que garante


A costureira muito desgraçada


Uma máquina infernal de fazer fumo


Um professor que não sabe quase nada


Um colossalmente bom aluno


Um revolver já desiludido


Uma criança doida de alegria


Um imenso tempo perdido


Um adepto da simetria


Um conde que cora ao ser condecorado


Um homem que ri de tristeza


Um amante perdido encontrado


Um gafanhoto chamado surpresa


O desertor cantando no coreto


Um malandrão que vem pe-ante-pé


Um senhor vestidíssimo de preto


Um organista que perde a fé


Um sujeito enganando os amorosos


Um cachimbo cantando a marselhesa


Dois detidos de fato perigosos


Um instantinho de beleza


Um octogenário divertido


Um menino coleccionando estampas


Um congressista que diz Eu não prossigo


Uma velha que morre a páginas tantas