sábado, 7 de junho de 2014

"A Encomenda do Silêncio" por Alberto Pimenta

Já reparaste que tens o mundo inteiro 
dentro da tua cabeça 
e esse mundo em brutal compressão dentro da tua cabeça 
é o teu mundo 
e já reparaste que eu tenho o mundo inteiro 
dentro da minha cabeça 
e esse mundo em brutal compressão dentro da minha cabeça 
é o meu mundo 
o qual neste momento não te está a entrar pelos olhos 
mas através dos nomes 
pois o que tu tens dentro da tua cabeça 
e o que eu tenho dentro da minha cabeça 
são os nomes do mundo em brutal compressão 
como um filtro ou coador 
de forma que nem és tu que conheces o mundo 
nem sou eu que conheço o mundo 
mas os nomes que tu conheces é que conhecem o mundo 
e os nomes que eu conheço é que conhecem o mundo 
o qual entra em ti e o qual entra em mim 
através dos nomes que já tem 
de forma que o que entra pelos meus olhos não pode 
entrar pelos teus olhos 
mas só pela tua cabeça através 
dos nomes dados pela minha cabeça 
àquilo que entrou pelos meus olhos já com nomes 
e do mesmo modo 
o que entra pelos teus olhos não pode 
entrar pelos meus olhos 
mas só pela minha cabeça através 
dos nomes dados pela tua cabeça 
àquilo que entrou pelos teus olhos já com nomes 
e assim o que tu vês 
já está normalmente dentro de ti antes de tu o veres 
e assim o que eu vejo 
já está normalmente dentro de mim antes de eu o ver 
e tudo quanto tu possas ver para aquém ou para além dos nomes 
é indizível e fica dentro de ti 
e tudo quanto eu possa ver para aquém ou para além dos nomes 
é indizível e fica dentro de mim 
e é assim que vamos construindo a nós mesmos pela segunda vez 
tu a ti e eu a mim... 
construindo urna consciência irrepetível e intransmissível 
cada vez mais intensa e em si 
tu em ti eu em mim 
no entanto continuando a falar um com o outro 
tu comigo e eu contigo 
cada um 
tentando dizer ao outro 
como é o mundo inteiro que tem dentro da cabeça 
e porque é e para que é 
tu o teu mundo que tens dentro da tua cabeça 
eu o meu mundo que tenho dentro da minha cabeça 
até que morra um de nós 
e depois o outro... 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

De "Rayuela" por Julio Cortázar


No mesmo instante em que ele lhe amalava o noema, ela lhe dava com o clemiso, e ambos caiam em hidromurias, em abanios selvagens, em sustalos exasperantes. De cada vez que procurava relamar as incopelusas, ele emaranhava-se num grimado queixoso e tinha de envulsionar-se de cara para o novalo, sentindo como se, pouco a pouco, as arnilhas se espechunassem, se fossem apeltronando, reduplimindo, até ficar estendido como o trimalciato de ergomanina no qual se tivesse deixado cair umas filulas de cariaconcia. E, apesar disso, aquilo era apenas o principio, pois em dado momento ela tordulava-se os hurgalios, consentindo que ele aproximasse suavemente os seus orfelunios. Logo que se entreplumavam, algo como um ulucordio os encrestoriava, os extrajustava e paramovia, dando-se, de repente, o clinon, a esterfurosa convulcante das matricas, a jadeolante embocapluvia do orgumio, os espremios do merpasmo numa sobremitica agopausa. Evohe! Evohe! Volposados na crista do murelio sentiam-se balparamar, perlinos e marulos. Tremia o troque, as marioplumas era vencidas, e tudo se resolvirava num profundo pinice, em niolamas argutendidas gasas, em carinias quase crueis que os ordopenavam até ao limite das gunfias.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

"La Cage" por Edgar Georges

Hamsters, réveillez-vous
la paille vous attend, là-bas
et les regards qui vous fustigent lorsqu’on recherche l’absolu
Une maison, de beaux vêtements, des voyages…
Réveillez-vous et brisez l’algorithme du monstre qui vous écrase !
La marguerite un jour n’aura plus de pétales
Le vent tournera sous ce ciel cristallin
Les bols de jouvence seront bientôt vidés
La foret n’aura plus de secrets, plus de charme
Et sur le chemin de la cage ils diront : “Marchons tout droit vers la liberté !”
Donnez-moi raison, laissez-moi crier
Pour nous tous
Du haut de la colline
Que la pureté revienne

sexta-feira, 18 de abril de 2014

De "Cem Anos de Solidão" por Gabriel Garcia Marquez


"Foi Aureliano quem concebeu a formula que havia de os defender durante vários meses das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Perito da insónia por ter sido um dos primeiros, aprendera na perfeição a arte da ourivesaria. Um dia andava à procura de uma bigorna pequena que costumava usar para laminar os metais e não se recordou do seu nome. O pai disse-lho: “Tás”. Aureliano escreveu o nome num papel e colocou-o na base da bigornazinha: Tás. Assim teve a certeza de não o esquecer no futuro. Não lhe ocorreu que aquela fosse a primeira manifestação do esquecimento, porque o objecto tinha um nome difícil de recordar. Mas, poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade em lembrar-se de quase todas as coisas do laboratório. Então marcou-as com o respectivo nome, de modo que lhe bastava ler a inscrição para as identificar. Quando o pai lhe comunicou o seu alarme por ter esquecido até os acontecimentos mais importantes da sua infância, Aureliano explicou-lhe o seu método e José Arcadio Buendía pô-lo em prática por toda a casa, impondo-o mais tarde a toda a aldeia. Com um hissope cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, parede, cama, caçarola. Foi ao estábulo e marcou os animais e as plantas: vaca, cabra, porco, galinha, jucá, malanga, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, deu-se conta de que podia chegar o dia em que se reconhecessem as coisas pela inscrições mas em que não se lembrasse da sua utilidade. Então foi mais explícito.  O letreiro que colocou no cachaço da vaca era uma prova exemplar de como os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: é esta a vaca. É preciso ordenha-la todas as manhãs para que dê leite e é preciso ferver o leite para o misturar com café e fazer café com leite. Assim continuaram a viver numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras mas que havia de fugir-lhes irremediavelmente quando se esquecessem dos valores da letra escrita.
Na entrada do caminho para o pântano tinham posto um cartaz que dizia Macondo e outro, maior, na rua central que dizia Deus existe."

De "Ossóptico" por António Maria Lisboa

(Ventoinha d’Ouro é a ti que eu amo, candelabro de cera liquida é de ti que eu gosto, imagem louca é a ti que eu possuo no nosso leito macio como uma violeta de uma só pétala de seda e veludo, de dia, de noite, no uivo do bicho pré-histórico que anda alma-penada a existir connosco. Sobre um tambor de pele-humana a tua figura maldita – teu peito de prata, tuas pernas de lua. Tombaram-te os olhos e sou eu ainda que te procuro-encontrando).

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"Rêve Oublié" por António Maria Lisboa

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti

Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo

Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no cimo disto tudo uma montanha de ouro

E no fim disto tudo um Azul-de-Prata.

"Inventário" por Alexandre O'Neill


Um dente d'ouro a rir dos panfletos


Um marido afinal ignorante


Dois corvos mesmo muito pretos


Um polícia que diz que garante


A costureira muito desgraçada


Uma máquina infernal de fazer fumo


Um professor que não sabe quase nada


Um colossalmente bom aluno


Um revolver já desiludido


Uma criança doida de alegria


Um imenso tempo perdido


Um adepto da simetria


Um conde que cora ao ser condecorado


Um homem que ri de tristeza


Um amante perdido encontrado


Um gafanhoto chamado surpresa


O desertor cantando no coreto


Um malandrão que vem pe-ante-pé


Um senhor vestidíssimo de preto


Um organista que perde a fé


Um sujeito enganando os amorosos


Um cachimbo cantando a marselhesa


Dois detidos de fato perigosos


Um instantinho de beleza


Um octogenário divertido


Um menino coleccionando estampas


Um congressista que diz Eu não prossigo


Uma velha que morre a páginas tantas

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Por Alexandre O'Neill

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

De "Pena Capital" por Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura ...

tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

segunda-feira, 25 de março de 2013

De "Antes que Anoiteça" por Reinaldo Arenas


Passeio por ruas desmoronando-se
em delapidados esgotos
por entre prédios de que se foge
pois caem-nos em cima.

Por entre toscos rostos
que nos medem e condenam,
por entre lojas fechadas,
mercados fechados,
cinemas fechados,
jardins fechados, cafés fechados,
exibindo às vezes
poeirentos cartazes justificativos.

Fechado para obras,
Fechado por renovação..

Que género de renovação?
Quando termina a tal obra,
a tal renovação?
Quando sequer começa?

Fechado, fechado, fechado
tudo fechado.

Chego, abro inúmeros cadeados,
subo a correr
a improvisada escadaria;
aí esta ela, esperando-me.

Encontro-a, destapo-a
e contemplo a sua poeirenta
e fria forma,
sacudo o pó e acaricio-a.

Com pequenas palmadas
limpo-lhe o lombo,
a base, os lados.

Sinto-me desesperado,
feliz a seu lado,
de frente para ela
passo as mãos pelo teclado
e rapidamente tudo começa:

com o tá-tá e tilintar
a música começa, pouco a pouco,
agora mais rápida,
agora a toda a velocidade.

Paredes, árvores, ruas,
catedrais, rostos e praias.

Celas, mini-celas,
grandes celas,
noites estreladas,
pés descalços, pinhas, núvens,
centenas, milhares,
um milhão de papagaios,
bancos e uma trepadeira.

Tudo acode, tudo vem,
Tudo se aproxima.
As paredes recuam, o tecto
some-se e flutuas naturalmente,
flutuas desenraízado,
flutuas arrancado, arrastado,
elevado, levado, transportado,
imortalizado e salvo.

Graças a essa inaudível
e constante cadência,
por essa música,
por aquele ta-ta-tá incessante.

sexta-feira, 1 de março de 2013

De "A Man in Full" por Tom Wolfe


The fan overhead went scrack scrack scraaaacccckkkkk.

Grover Washington's saxophone went buhooomu-hoooooooom.... 
Thra-gooooom!
Gluglugluglug went the toilets.... 

And then the tuckatuckatuckatuckatuckatucka [of spoons beating ice cream cups] began.